Sexta-feira Santa: por que Cristo morreu?

Pode ser útil responder a essa pergunta em quatro estágios, começando com o claro e não controverso, e, passo a passo, ir penetrando mais profundamente no mistério.

Primeiro, Cristo morreu por nós. Além de ser necessária e voluntária, sua morte foi altruísta e benéfica. Ele a empreendeu por nossa causa, não pela sua, e cria que através dela nos garantia um bem que não poderia ser garantido de nenhum outro modo. O Bom Pastor, disse ele, ia dar a sua vida pelas ovelhas, em benefício delas. Similarmente, as palavras que ele proferiu no cenáculo, ao dar o pão aos seus discípulos, foram: "Isto é o meu corpo oferecido por vós". Os apóstolos pegaram esse simples conceito e o repetiram, às vezes tornando-o mais pessoal, trocando a segunda pessoa pela primeira: "Cristo morreu por nós". Ainda não há nenhuma explicação e nenhuma identificação da bênção que ele nos assegurou mediante a sua morte, mas pelo menos concordamos quanto às expressões "por vós" e "por nós".

Segundo, Cristo morreu para conduzir-nos a Deus (1Pe 3:18). O foco do propósito benéfico da sua morte é a nossa reconciliação. Como diz o Credo Niceno: "por nós (geral) e por nossa salvação (particular) ele desceu do céu... "A salvação que ele conseguiu para nós mediante sua morte é retratada de vários modos. Às vezes é concebida negativamente como redenção, perdão ou libertação. Outras vezes é positiva — vida nova ou eterna, ou paz com Deus no gozo de seu favor e comunhão. No presente, o vocabulário preciso não importa. O ponto importante é que, em conseqüência da sua morte, Jesus é capaz de conferir-nos a grande bênção da salvação.

Terceiro, Cristo morreu por nossos pecados. Nossos pecados eram o obstáculo que nos impedia de receber o dom que ele desejava dar¬nos. De modo que eles tinham de ser removidos antes que a salvação nos fosse outorgada. E ele ocupou-se dos nossos pecados, ou os levou, na sua morte. A expressão: "por nossos pecados" (ou fraseado muito similar) é usada pela maioria dos escritores do Novo Testamento; parece que eles tinham certeza de que — de um modo ainda não determinado — a morte de Cristo e nossos pecados se relacionavam. Eis uma amostra de citações: "Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras" (Paulo); "Cristo morreu pelos pecados uma vez por todas" (Pedro); "ele apareceu de uma vez por todas. . . para desfazer o pecado mediante o sacrifício de si mesmo", e ele "ofereceu de uma vez por todas um sacrifício pelos pecados" (Hebreus); "o sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo o pecado" (João); "àquele que nos ama e nos libertou de nossos pecados através do seu sangue. . . seja a glória" (Apocalipse). Todos estes versículos (e muitos mais) ligam a morte de Jesus aos nossos pecados. Que elo é esse?

Quarto, Cristo sofreu a nossa morte, ao morrer por nossos pecados. Isso quer dizer que se a sua morte e os nossos pecados estão ligados, esse elo não é efeito de mera conseqüência (ele foi vítima de nossa brutalidade humana), mas de penalidade (ele suportou em sua pessoa inocente a pena que nossos pecados mereciam). Pois segundo a Escritura, a morte se relaciona com o pecado como sua justa recompensa: "o salário do pecado é a morte" (Rm 6:23). A Bíblia toda vê a morte humana não como um evento natural, mas penal. E uma invasão alienígena do bom mundo de Deus, e não faz parte de sua intenção original para a humanidade. É certo que o registro fóssil indica que a pilhagem e a morte existiam no reino animal antes da criação do homem. Porém parece que Deus tinha em mente um fim mais nobre para os seres humanos portadores de sua imagem, fim talvez semelhante ao traslado que Enoque e Elias experimentaram, e à "transformação" que ocorrerá com aqueles que estiverem vivos na volta de Jesus. Através de toda a Escritura, pois, a morte (tanto física como espiritual) é vista como juízo divino sobre a desobediência humana. Daí as expressões de horror com relação à morte, a sensação de anomalia de que o homem se tivesse tornado como as bestas que perecem, uma vez que o mesmo destino aguarda a todos. Daí também a violenta indignação de que Jesus foi alvo em seu confronto com a morte ao lado do túmulo de Lázaro. A morte era um corpo estranho. Jesus resistiu-lhe; ele não pôde aceitá-la.

Se, pois, a morte é a pena do pecado, e se Jesus não tinha pecado próprio em sua natureza, caráter e conduta, não devemos dizer que ele não precisava ter morrido? Não poderia ele, em vez de morrer, ter sido trasladado? Quando o seu corpo se tornou translúcido durante a transfiguração no monte, não tiveram os apóstolos uma previsão do seu corpo da ressurreição (daí a instrução de a ninguém contarem acerca desse acontecimento até que ele ressurgisse dentre os mortos, Marcos 9:9)? Não podia ele naquele momento ter entrado no céu e escapado à morte? Mas ele voltou ao nosso mundo a fim de ir voluntariamente à cruz. Ninguém lhe tiraria a vida, insistia ele; ele ia dá-la de sua própria vontade. De modo que quando o momento da morte chegou, Lucas a representou como um ato autodeterminado do Senhor. "Pai", disse ele, "nas tuas mãos entrego o meu espírito". Tudo isso significa que a simples afirmativa do Novo Testamento: "ele morreu por nossos pecados" diz muito mais do que aparenta na superfície. Afirma que Jesus Cristo, sendo sem pecado e não tendo necessidade de morrer, sofreu a nossa morte, a morte que nossos pecados mereciam.

John Stott
In: A cruz de Cristo

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"Se amássemos mais a glória de Deus, se nos importássemos mais com o bem eterno das almas dos homens, não nos recusaríamos a nos engajar em uma controvérsia necessária, quando a verdade do evangelho estivesse em jogo. A ordenança apostólica é clara. Devemos “manter a verdade em amor", não sendo nem desleais no nosso amor, nem sem amor na nossa verdade, mas mantendo os dois em equilíbrio (...) A atividade apropriada aos cristãos professos que discordam uns dos outros não é a de ignorar, nem de esconder, nem mesmo minimizar suas diferenças, mas discuti-las." John Stott

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